quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crônicas noturnas: Jogo das Sombras 01


Laura abriu os olhos com dificuldade. As pálpebras pareciam apertar, forçando-a voltar a fechá-los. Sentia todo o corpo dolorido e cada respirar era um tormento. O gosto metálico do sangue persistia grudado em sua boca. Aos poucos, o cenário foi parando de rodar e dando lugar a um espaçoso salão branco. O mais branco que já havia visto na vida. Foi percorrendo o teto vagarosamente com o olhar. Um grande lustre redondo marcava o centro do cômodo. Uma meia luz fraca, apenas o suficiente pra clarear o ambiente.

Ela tentou levantar, porém ainda não tinha forças suficientes pra erguer o corpo. Vozes femininas finalmente alcançaram seus ouvidos. Aos poucos, a garota virou a cabeça, encontrando um círculo de figuras encapuzadas sentadas num círculo ao redor da cama onde estava, seguindo os desenhos riscados no chão. Um pedestal com soro ficava ao lado do leito, ligado a sua mão direita. Um lençol branco a cobria até os ombros sobre a camisola de seda que trajava.

Ela voltou a deitar na cama.

- onde eu to? – ela perguntou olhando novamente o teto, sentindo os olhos tornarem a cerrar.

Então as imagens explodiram dentro da cabeça. A perseguição na volta do aeroporto, o carro capotando, Bart a arrastando pra longe e a fumaça, o sangue e nada.

Ela voltou a tentar se erguer, com os olhos arregalados. Sendo acalmada e posta de volta na cama.

- Será possível que vocês nunca sabem cooperar com a gente? – ela ouviu a conhecida voz de Mariana como sempre, reclamando com ela enquanto as vozes continuavam entoando alguma coisa ao fundo– Você passou oito horas sendo remendada. A menos que queira tornar a se arrebentar toda de dentro pra fora, é melhor ficar bem quietinha.

- Mas... – ela começou a rebater tentando afastar as mãos da médica.

- Mas nada! – ela suspirou irritada encarando o olhar de Laura – Ele tá vivo. Muito melhor que você. Era isso que queria saber? Ficou aqui sentado uns três dias. Então saiu. Agora fica quieta aí!

- Saiu pra onde? – Laura perguntou sentindo as dores conseqüentes da tentativa de levantar.

- Ora, da última vez que chequei tinha um navio estranho no porto e um vampiro perigoso solto pela cidade. Onde você acha que ele foi?

Laura não respondeu. Apenas se ajeitou na cama e puxou o lençol.

- Agora tente descansar. Você sobreviveu. Já é mais do que quase todo o time europeu que desembarcou. Vai precisar ficar aqui por mais um bom tempo. Deixe as curandeiras fazerem o trabalho delas, senão mando te amarrar na cama.

A Dra. Saiu, deixando Laura novamente sozinha com aquelas figuras encapuzadas entoando cânticos. De alguma forma, ela tinha sobrevivido. Ele tinha salvado ela. Laura sabia disso. Então, voltou a fechar os olhos e deixar o sono tomar conta. Era o melhor a fazer naquele momento. Se recuperar e voltar às missões de campo.

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O barulho do rotor das hélices do helicóptero provocava o silêncio dentro do veículo. Bart continuava sentado, com a mesma expressão séria desde o incidente na estrada. Ninguém teria saído com vida de algo assim. Não carregando Laura nos braços e cercado por quase 20 vigias. Mas, de alguma forma, ele havia feito.

O que os outros não sabiam era como. E esse como era o que fazia as sobrancelhas de Bart franzir a cada minuto. Ele sabia que devia ter morrido.

Cercado, carregando feridos. O velho caçador se jogou por cima do capô de um dos carros, disparando contra os vigias mais próximos. Precisava alcançar as armas. Os tiros ricocheteavam em todos os cantos. Duas balas passaram bem perto de sua cabeça. A energia de seu suit não lhe daria muito mais tempo. Dois vigias se aproximavam por trás de um dos carros virados fazendo barulho suficiente para alertar Bart, que se atirou contra o chão disparando por debaixo do veículo nas pernas dos dois, derrubando-os  e depois finalizando o trabalho com uma rajada de tiros.

Balas acabando. A fumaça começando a se elevar. Ele não sabia se dos carros ou granadas jogadas pelos vigias. Gritos ao fundo indicavam as pessoas na estrada apavoradas com o que acontecia.

O caçador respirou fundo, sacando duas facas que escavam presas em suas costas. Tinha que se virar com aquilo até conseguir chegar ao Hover. Esperou a primeira leva de disparos parar e deslizou por entre os carros. Não devia faltar muito. Só precisava avançar mais alguns metros e...

O golpe de um dos vigias lhe acertou em cheio o rosto, quase o derrubando. Ele sorriu. Vigia idiota. Devia ter atirado e terminado o trabalho. Bart desviou do segundo golpe e no terceiro agarrou o braço do homem, torcendo-o e virando até ouvir o estalo do osso, então girou pra trás do serviçal e num movimento ligeiro das mãos lhe quebrou o pescoço, tornando a avançar antes mesmo do corpo tocar o chão. Talvez ele realmente conseguisse fazer aquilo.

No meio do pensamento, o impacto de dois tiros contra seu peito o atirou pra trás, sugando o que restava da energia de seu suit para impedir a munição de atravessar seu corpo. O golpe não foi mortal, mas forte o suficiente para deixar o caçador sem ar estirado no meio da estrada. O vigia se aproximou, mirando cuidadosamente sua cabeça. Bart tentou alcançar o revolver, mas o pé do Vigia esmagando sua mão contra o chão impediu que a alcançasse. Após tanto tempo, finalmente tudo parecia se encaminhar para o fim. O vigia riu. Bart também. Ele disparou.

Por um instante, Bart pode sentir o calor da bala tocando sua testa... Nada. O vigia havia sumido. Os tiros parado. Restava apenas Bart caído no chão, encarando as nuvens.

- Bom dia. – disse a voz suave do homem que se aproximava.

Bart virou o rosto, fitando-o. Ele era alto, muito magro, a cabeça não trazia nem sinal de cabelo, uma barba rala castanho-clara sombreava seu maxilar emoldurando o sorriso esgaçado deixando à mostra os impecáveis dentes brancos. Ele deu uma leve puxada nas calças antes de se abaixar ao lado do caçador.

- Reconhece? – disse erguendo a mão e mostrando a bala, segura entre os dedos indicador e polegar, enquanto os demais ficavam erguidos num meio arqueio. Luvas brancas. – Era o que estava destinado a entrar bem aqui. – comentou dando um toque com a ponta da munição na testa de Bart. – Mas não dessa vez. Não ainda.

- Quem é você? – Bart perguntou tentando se levantar, mas seu corpo parecia pregado ao chão.

- Hum... Uma boa pergunta. Infelizmente com muitas respostas. Resumirei, então, para você. Sou um mágico. Posso fazer coisas que ninguém mais pode. Como, por exemplo, fazer desaparecer uma bala e aparecer em outro lugar. Porém, é uma arte complicada. Exige uma certa ciência ou compreensão. No fim, as duas coisas são sinônimos. Um dia minha magia também será ciência, quando as massas adquirirem a compreensão para entender o que faço. Até lá, sou um mágico.

- Já que se deu ao trabalho de fazer a bala sumir e aparecer em outro lugar, acredito que não veio me matar. A menos que seu plano seja falar até me matar de tédio.

- Não, não vim te matar. Vim não te matar. Mas, infelizmente, como disse antes, a mágica exige um certo conhecimento. Veja, esta bala deveria matar alguém. Mas impedi que ela o matasse. Tudo tem um propósito. Não posso impedir que esse propósito seja cumprido. Logo, essa bala precisa matar alguém. – ele disse conforme deslizava o dedo pela munição e a carregava em um revolver que tirou do bolso. Depois, deu uma olhadela pra cada lado, como se espiasse além da fumaça – Vamos fazê-la cumprir seu propósito, então.

Ele atirou a bala em alguma direção e esperou alguns segundos. Então acenou com a cabeça e sorriu.

- Feito. Ele disse guardando novamente a arma – Viu? No fim, é até simples. Mas não vim aqui falar sobre isso. Desculpe, costumo divagar. Vim avisar que não somos seus inimigos. Não tentem nos impedir. Salvamos suas vidas. Também podemos tirá-la. Fiquem quietinhos tomando sol e deixem as sombras cuidarem das sombras. É melhor assim.

Ao terminar, ele levantou, pôs as mãos nos bolsos e saiu assoviando conforme caminhava tranquilamente. Deixando apenas Bart e Laura no local. Ninguém mais apareceu. A fumaça não dissipou. Horas mais tarde, uma equipe de resgate da Fundação chegou.

E agora, contrariando o aviso, Bart seguia no helicóptero rumo a uma zona de efeito. Ele sabia que o mágico tinha algo haver com o navio misterioso. Sabia que era por isso que aquela equipe britânica havia vindo. E, ainda assim, a Fundação enviava seus caçadores para dentro da boca do leão.

O velho caçador apertou mais uma vez a aliança entre os dedos e se benzeu.

Algo grande estava a caminho.


sábado, 2 de abril de 2011

Dia 29 - III

Faziam alguns minutos que o grupo recém formado estava na estrada. Pela expressão no rosto de Bart, Laura sabia que ele não estava nada feliz com os passageiros. Ele conhecia o homem estranho com a máscara. Talvez tivessem trabalhado juntos. Talvez Bart já tivesse ido a uma missão parecida na Inglaterra. Talvez explicasse o porquê dele odiar o lugar. Nunca tinha perguntado muito sobre o passado do caçador, e ele também nunca respondia muita coisa quando perguntava. Só sabia sobre a mulher dele pelo que ouviu dos outros caçadores. “Não é uma história feliz”, é o que sempre diziam. Bom, a história dela também não era. Os pesadelos que a acordavam todo dia deixavam isso claro. Se tivessem histórias felizes, não seriam caçadores, estariam sentados em algum escritório na frente de um computador. Mas o que levaria um caçador a achar uma história triste mesmo comparada à dele mesmo?
- Hey, criança! – a voz de Bart a fez voltar de seus pensamentos – Pegue a arma. Estamos sendo seguidos.
Bart mal acabou de avisar a companheira, quando uma caminhonete vermelha os cortou na estrada, freando rápidamente em seguida, forçando o caçador a manobrar velozmente para evitar a colisão. Laura, quase que instintivamente, acertou um golpe na porta, abrindo o compartimento em que a arma estava guardando, a pegando e a engatilhando.
Um segundo veículo surgiu, se chocando lateralmente contra o carro. Bart mau conseguiu manter a direção, girando o volante o mais rápido que pode para evitar que o veículo começasse a rodar na pista. Laura se contorceu no banco, apontando a espingarda para a janela do Hover. Logo, uma segunda colisão na lateral do carro, seguido pelo disparo de Laura, quebrando a janela dos dois veículos e, possivelmente atingindo o motorista do outro carro, que começou a balançar de um lado para o outro, até finalmente ficar fora de controle e se chocar contra a frente de um Fox que vinha do outro lado da pista, fazendo com que o carro se erguesse, girando no ar, e caindo de cabeça para baixo na estrada, dando mais dois giros no chão antes de parar.
Laura sorriu a princípio, acompanhando aquele carro preto perder o controle, porém, não teve a chance de acompanhar o resto, pois a caminhonete vermelha voltou, mais parecendo se materializar ao lado do carro, chocando-se de frente contra a lateral do Hover,  o fazendo capotar para o outro lado da pista, fazendo-o se chocar com o Fox envolvido no acidente anterior.
Mesmo de olhos fechados, Laura sentia o mundo chacoalhar como se estivesse dentro de um liquidificador gigante. Sentia o braço e as costelas quebradas. O gosto metálico do sangue na boca. A sensação quente no rosto dava a ela a noção de o quanto devia estar mal. Sentia seu corpo sendo arrastando e a dor lacerante provocada por cada centímetro percorrido. Alguém a segurava chamando seu nome. A princípio bem distante, se aproxmendo aos poucos, até ela conseguir identificar a voz de Bart.
- Laura! Menina! Acorda! Você tem que acordar! – Ele falava em seu ouvido conforme a puxava.
Ela abriu os olhos devagar. Enxergando borrões a princípio, que aos poucos foram recuperando o foco. Bart também não estava nas melhores condições. O rosto coberto de sangue. E só ele sabia oq tinha acontecido por debaixo do suit.
- B- Bart... – ela tentou falar, mas não tinha voz o suficiente pra isso.
- Calma, menina. Não fala nada. Só se concentre na combinação pra iniciar a sustentação de emergência do suit. – Ele falou passando a mão na cabeça da garota e limpando um pouco do sangue em seu rosto. Ela obedeceu. Com o pouco de voz que conseguia usar, iniciou o estado de emergência, liberando doses de morfina por todo o corpo e deixando o exoesqueleto fazer o resto.
Bart repousou a cabeça da garota nos restos enrolados da camisa que usava. A sustentação de seu suit ainda não estava em estado crítico. 60% da energia fora desviada. Conseguiria se movimentar por algum tempo. Só precisaria pegar as armas no porta-malas do Hover, a parte fácil. E matar os Vigias que haviam cercado o local do acidente. E ver se algum dos baças britânicos ainda tava vivo. 

domingo, 6 de março de 2011

Dia 29 - II

A agulha deslizava, colorindo a pele de Laura em um tom avermelhado forte. Movimentos rápidos e precisos traçavam runas mais antigas que a memória na altura da cintura da caçadora. Uma língua desconhecida era quase que cantada pela mulher que manejava a agulha. Não uma agulha elétrica, mais parecia um longo pincel, mas com cerdas afiadas no lugar do pêlo em sua ponta, que iam sendo espetadas rápida e incessantemente nas costas da garota, que apertava os olhos e rangia os dentes segurando a dor. Uma dor necessária, que garantiria a segurança do conhecimento da Fundação que ela possuísse. Todo caçador precisava passar por esse processo. Alguns, como Bart, mais que outros. Cada runa nova, cada marca feita por Abgail, era especial. Uma arte muito antiga, há muito não usada. Exceto por eles.

- Achei que tinha dito pra ir à enfermaria. – A voz de Bart chegou irritada à sala.
- Eu fui... Não tinha... nada. – respondeu Laura ainda debruçada sobre o leito enquanto Abgail terminava o trabalho.
- Quando terminar, me encontre na garagem. Vamos ter que buscar as visitas.
- Visitas? – perguntou Laura.
- Alguns pesquisadores europeus. Querem estudar nossos vampiros. Ver se tem alguma diferença dos deles... Ou qualquer desculpa do tipo pra vir espionar a gente. Ter certeza que ainda podem mandar. – Respondeu Bart enquanto saía.
- Quantas dessas ele tem? – indagou Laura após algum tempo em silêncio.
- Bart? – questionou Abgail – Mais do que posso lembrar. Acho que ele é uma das três pessoas que mais trabalhei em todos os meus anos de vida.
- Você faz parecer que é uma velha. – brincou a garota virando para observar os cabelos cacheados avermelhados de Abgail, que desciam pelos lados do rosto delicado e os grandes olhos verdes. – Você não deve chegar nem aos 25!
- Multiplique isso algumas vezes que você chega perto, criança. – respondeu ela sorrindo. – Conheci Bartolomeu no primeiro dia dele na Fundação. Eu já estava aqui há, pelo menos, uma década.
- Impossíve...Ai!
- Tente não se mexer. Não posso errar o acabamento. – ralhou Abgail – Vampiros não são os únicos seres que conseguem expandir seu tempo de vida, querida.

Alguns minutos depois, Laura voltava a fechar seu Suit e cobri-lo com suas roupas para ir ao encontro de Bart, que a esperava recostado em um Range Rover prateado e com charuto acesso na boca. O longo cabelo cinzento preso pra trás e um terno cobrindo o suit. Terno. Uma coisa que ela nunca imaginou ver Bart vestindo. Assim que se aproximou, ele caminhou até o porta-malas e o abriu, depois puxou uma segunda alavanca, abrindo mais um compartimento, este, guardando um pequeno arsenal de emergência.

- Além destas, temos duas 45 no porta-luvas e espingardas nas portas. O carro é blindado, mas sabemos que não deve durar muito em caso de um ataque. – Explicou ele – Como estão as costas?
- Doloridas. Mas só um pouco. – respondeu a garota deslizando de leve a mão sobre o local recém tatuado – Estamos esperando uma tentativa de interceptação?
- Nós sempre esperamos algo do tipo. Mas o Sol ainda tá no céu e a menos que eles tenham um filtro solar fator 5000, café hiper concentrado pra escapar do transe ou algum anel idiota de seriado de TV, estaremos bem. As armas são pra explodir a cabeça do pessoal que vamos esperar se tentarem alguma gracinha. – ele sorriu.

Black Sabbath embalava os dois durante a viagem de pouco mais de meia hora da saída da sede até o Santos Dumont. Sem sinal de vigias perseguindo o carro. Provavelmente tinham mais o que fazer, claro. Uma visita dos caçadores do velho continente só podia significar que alguma coisa deles acabara de cair no nosso colo. Só restava descobrir o quê.

- Acha que tem haver com aquele navio que interceptamos? – Laura quebrou o silêncio.
- Se não for aquilo, então o problema vem no avião com eles. – respondeu Bart enquanto parava em um sinal fechado.
- Tá, já deu pra notar que você não gosta deles. Por quê?
- Já trabalhei com eles por alguns anos. Pose demais, ação de menos. Parece cachorro pequeno, late até te deixar maluco e quando você chega perto corre pra debaixo da cama. – Debochou Bart – E além disso, odeio sotaque inglês.
- Eu acho o sotaque fofo. – respondeu Laura sorridente enquanto observava a paisagem pela janela.
- Você e toda geração Harry Potter. – desdenhou Bart.
- Quê? É um bom livro! – protestou a garota - Já falei que você devia dar uma chance.
- Você me fez ver os filmes, lembra? Já eram ruins o suficiente pra mim.

Bart deu a volta no aeroporto, estacionando próximo à pista de pouso. Então saiu do carro colocando uma das 45 no coldre interior do terno e acendendo mais um charuto. Laura permaneceu no interior do veículo, com a arma em punho, aguardando a chegada dos convidados. 

Não foi preciso esperar muito, três figuras vestindo longos jalecos brancos se aproximaram do carro, cumprimentando Bart. Um senhor magro e alto, de cabelos grisalhos na lateral da cabeça e barba por fazer; outro, um pouco mais jovem, de cabelos claros, com uma máscara cobrindo o lado esquerdo do rosto; e uma mulher de meia idade, morena, cabelos longos e negros presos em um coque no topo da cabeça.

- Pesquisador agora, Jeoff? – Perguntou Bart sorrindo ao homem com a máscara.
- Abria entranhas de criaturas das trevas e olho o que tem dentro. – sorriu Jeoff de volta – Isso não é um tipo de pesquisa? Mas agora – ele ergueu o braço esquerdo, exibindo a ausência da mão – não estou em condições de fazer isso em campo.
- E seus acompanhantes?
- Oh, é claro. Este – ele estendeu a mão para o homem alto, é Tom Radec. E essa encantadora senhora, Lea Ridgers.
- Posso me apresentar sozinha, Riths. – Interrompeu a mulher – Sou a Dra. Lea Ridgers, chefe da equipe de pesquisa. Viemos na frente para preparar tudo. O resto de nossa equipe deve chegar em algumas horas. Creio que devem ter ordem de nos levar até a sede, sim?

Bart concordou com a cabeça e abriu a porta para os três entrarem no veículo, provocando algumas reclamações sobre como o veículo era inadequado para uma recepção. Fato que Bart simplesmente ignorou dando a partida e levando o trio rumo a Fundação.

domingo, 27 de fevereiro de 2011

Dia 29 - I

A larga coluna de fumaça escurecia o céu da manhã. Ao fundo, as badaladas dos sinos de uma pequena igreja anunciavam a chegada das sete horas à Bart, que fitava aquele céu azul maculado pelas espessas nuvens negras fedendo a queimado. Um ataque rápido e limpo, minutos após o nascer do sol que, ao contrário do que muitos podem pensar, era a melhor hora para atacar uma ninhada. Os vampiros teriam acabado de entrar em transe, e os vigias ainda estariam começando a se organizar para proteger o território. Logo, poucas baixas e um resultado quase sempre eficaz. Os restos carbonizados de uma mansão com 42 corpos transformados em cinzas malditas confirmavam isso.

O caçador veterano sentou nos restos da escadaria que levavam a varanda, pegando um lenço do bolso de um vigia morto para limpar os óculos escuros. Quase não precisou usar seu suit. Há alguns anos atrás, não teria precisado nem mesmo vestí-lo. Deu uma olhada em volta, observando os corpos dos vigias serem carregados e atirados dentro de um caminhão de lixo. Era a forma mais fácil de transporte. Um só caminhão conseguia levar umas dezenas de corpos até o local onde seriam incinerados. Era quase engraçado um caminhão de lixo ser usado para limpar a sujeira provocada em cada missão. Os caçadores haviam sofridos quatro baixas, mas esses eram transportados nos veículos dos sobreviventes de volta para base, onde era tratados, e só então cremados. Não podiam haver corpos. Não podia haver nada que pudesse ser usado pelo outro lado. Foi um dos muitos erros cometidos ainda no princípio da Fundação e que não voltaria a acontecer. Nada fica pra trás. Do pó ao pó.

- Não vai mesmo tentar saber se to viva? – a voz animada de Laura chegou aos ouvidos de Bart, que ergueu a cabeça para encontrar a menina correndo em sua direção com uma FAL no ombro, o cabelo dourado bagunçado e o rosto sujo de fuligem.
- Eu devia? – ele perguntou terminando de limpar as lentes.
- Só se estivesse preocupado. – Ela respondeu sorridente
- Então, não precisava.
- Por que você não admite que se preocupa? – reclamou Laura emburrada – Acha que não vi você me procurando? – ela riu enquanto sentava ao lado de Bart.
- Estava checando a área, garota. Só isso.
- Mentiroso.
- Cara suja.
- O quê? Onde? – perguntou ela meio sem jeito.
- Tudo. – debochou Bart jogando o lenço pra ela.

O velho levantou e começou a caminhar até sua Harley parada a poucos metros do caminhão de lixo, deixando Laura tentando tirar a fuligem do rosto com o lenço.

- Quando terminar, não esquece de devolver pro vigia morto.
- Vigia morto? – ela parou olhando o lenço por alguns segundos e o atirou em cima do cadáver – Eu não acredito que você me deu isso pra passar no rosto!
- E não foi você quem matou esse? Além disso, pra alguém que se arrasta no chão, quase teve a cara amassada e por pouco não foi jogada pela janela, achei que o lenço de um morto não era nada demais.
- I-isso... – a garota tentou rebater sem graça – Isso foi parte do...
- Precisa ir à enfermaria? – Bart a interrompeu.
- Há – ela abriu um largo sorriso – Viu como você se preocupa!
- Fica quieta e vamos embora. – reclamou ele jogando um capacete pra garota – Temos que voltar a sede. Parece que vamos receber alguns caçadores estrangeiros.
- Posso dirigir? – ela perguntou com uma mistura de esperança e brincadeira ao colocar o capacete.
- Vai sonhando.

O caminho até a sede foi rápido, mesmo no transito conturbado das ruas cariocas. Laura manteve a cabeça recostada nas costas de Bart. Se sentia segura assim. Hoje havia sido sua sexta missão em campo. Nenhuma fratura, poucos hematomas, sem o gosto de sangue na boca ou o suit inutilizado. Comparado a primeira missão, qualquer coisa seria uma melhora. Mas ela estava aprendendo rápido. E estava viva. No mesmo dia em que Laura entrara pra Fundação, outras oito pessoas também entraram. Quatro desistiram na primeira semana de treinamento. Outros três, não sobreviveram à primeira missão. O último, na segunda semana, no campo de treino. Laura passara por tudo isso. Sobrevivera. E durante todo esse tempo, Bart estava lá, a observando, a protegendo. Ela gostava de apertar o corpo contra as costas do caçador e fechar os olhos, deixando-se sentir o movimento da moto, deslizando pelo asfalto. 

- Eu vou ver o que eles querem. Você vai pra enfermaria ver se ainda tá tudo inteiro. – disse Bart enquanto os dois desciam a escadaria.
- Não gosto de ir lá. – Respondeu Laura contrariada.
- Não, você não gosta da Dra. Mariana.
- Ela é quem não gosta de mim! – protestou a garota.
- Se você diz. Mas isso não muda o fato dela ser nossa melhor médica e de você precisar ir ver se ainda tá tudo inteiro aí dentro.

Laura concordou a contra-gosto. Ela sabia que era verdade. Mariana havia recolocado seu ombro no lugar pelo menos quatro vezes nas ultimas duas semanas. Remendado seus ossos e costurado alguns cortes. Deixando a garotas com algumas poucas cicatrizes para ostentar. Nada perto de um braço recolocado. Mas ainda assim, a faziam se sentir mais valiosa na Fundação. Mas ela sempre suspeitava que a Dra. Albernaz fazia questão de realizar todo o processo de cura um pouco mais doloroso que o normal com ela. Então os dois se separaram. Seria mais um longo dia.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Noite 33, PT 03


A reunião começara fazia 10 minutos. Não muito tempo, mas o suficiente para as primeiras desavenças aparecerem. Uma gigantesca perda de tempo. Rhuan sabia disso, e por isso não fazia questão de se apresentar. Mas ele havia recebido a carta. Não podia se recusar a comparecer a um chamado direto da Rainha. Mas ela, claro, não se encontrava presente. O que, por sua vez, era o motivo da atual discussão. Renata, o Bispo Vermelho, estava sentada a direita do trono, a representando. Rhuan não se importava. Renata era uma das poucas pessoas que ele sentia alguma consideração. Não por sua beleza invejável ou seus recursos como cabeça de um dos três maiores clãs de Pandora, mas por sua capacidade de sempre estar à frente de quase todos. O que a levou a posição atual.
Olhos se acenderam em brasas, iluminando o breu da sala de reunião.  O corpo de algum guarda-costas voou partido ao meio sobre a cabeça de Rhuan. Alguém acabara de perder o controle. E nenhum guarda-costas seria o suficiente para impedir o que estava acontecendo. Eles estavam ali apenas como uma demonstração inútil de poder. Rhuan sabia disso. Renata sabia disso. E quando as coisas pareciam piorar a ponto de uma pequena guerra interna eclodir dentro da sala, a voz ecoou dentro da cabeça de todos os presentes. Bispos, torres e cavaleiros sentiram a voz lhes ser arrancada e seu coração já definhado se contorcer dentro do peito acompanhando a palavra “silêncio”, em um volume tão alto que deixaria qualquer pessoa desnorteada. E essa única manifestação da Rainha foi o suficiente para calar todos na sala e permitir que a reunião finalmente fluísse.
Renata tornou a sentar em sua cadeira. Ela tinha a pele branca, o suficiente para que tracejos azulados de suas veias pudessem transparecer em um olhar mais atento, cabelos e olhos negros como a sombra, que se ondulavam levemente por seus ombros até a cintura, lábios finos, cuidadosamente coloridos de vermelho-sangue, enquanto cada uma de suas unhas trazia o brasão de seu clã, Opificum Atra. Ela ajeitou os cabelos e gesticulou, fazendo com que dois serviçais trouxessem um caçador preso em uma cadeira. O homem vestia um robe branco e uma venda. Seus braços estavam atados aos braços da cadeira com arames farpados e suas mãos e pés presos com estacas de prata que provavelmente pertenciam a ele. Incitando a curiosidade dos presentes.
- O que um caçador faz aqui? – Apressou-se a indagar Rockwell.
- Se não me interromperem a cada minuto, poderei explicar. – respondeu Renata se dirigindo a Rockwell e depois virando para o caçador – Esse pequeno animal foi o que restou vivo em um cargueiro encontrado encalhado a alguns quilômetros da costa. Quando o encontramos – ela prosseguiu atropelando a tentativa de pronunciamento de Teodor, a Torre Branca – obviamente estava em um estado muito menos agradável. Fizemos o favor de tratá-lo até um ponto onde pudéssemos extrair a informação que precisávamos, sem o perigo de matá-lo no processo.
- Por que simplesmente não o transformou em um serviçal? – comentou Teodor com desprezo.
- Por que – ela acendeu levemente os olhos e fechou as mãos devagar fazendo com que o caçador começasse a se debater na cadeira e soltar urros de dor, terminando por uma chuva de vômito no próprio colo – Meu jeito é mais prático. – ela apagou os olhos com um sorriso no rosto. Um sorriso lindo, frio e cruel. – Voltando à questão. Após dois dias de interrogatório, conseguimos descobrir que ele fazia parte de uma pequena força de extermínio da célula britânica dos caçadores. Aproximadamente 20 caçadores que, de acordo com o que ele estava trajando quando o encontramos, equipamento pesado.
- Até aqui não vejo motivo para a reunião. – comentou Rockwell, desanimado.
- Exatamente. Até aqui, não temos nenhum problema. Se não fosse por essa operação de extermínio ter contado com o apoio de nossos irmãos europeus.
A revelação fez com que os presentes despertassem para o assunto. Teatralidade era uma das diversões de Renata. Uma das mais simples. Outras, como brincar com os corpos de suas vítimas ainda vivos, como acabara de fazer com o caçador, era uma das mais excêntricas.
- Conte a eles o que contou para meus aprendizes, macaco. – ela disse com sua voz suave próximo ao ouvido do caçador enquanto pareceu acariciar seu rosto, o que se mostrou pouco provável quando o homem afastou brutamente a cabeça das mãos da vampira deixando escapar um gemido de dor. – Estou esperando. – ela completou.
- T-tudo que sei – o homem começou a falar em inglês britânico – é que deveríamos invadir o navio. Por algum motivo – ele falava com dificuldade, interrompendo vez ou outra para respirar – vampiros apareceram... no meio do ataque e começaram... a ajudar. Não houve muita resistência... Dentro da embarcação, até que aquele homem apareceu... Os vampiros... Eles o chamaram de Do-Donacean. Então foi tudo muito rápido... Gritos, correria. As armas não funcionaram, os vampiros fugiram rápido... Eu caí no maquinário e... Não lembro mais nada.
Donacean. O Donacean? Rhuan já ouvira o nome antes. Um vampiro antigo. Ele não sabia o quanto. Mas o suficiente para começar a perder sua mente para a besta. Deveria ter sido exterminado há décadas na Alemanha. Rhuan suspirou.
- Então, senhorita Atra, o que sugere? – ele perguntou dando um sorriso de leve.
- O que mais? – se adiantou Rockwell – Caçamos Donacean. Se me for permitido, posso eu mesmo comandar tropas em busca do bastardo! – Era uma oportunidade única.
- Na verdade – rebateu Renata voltando a sentar na cadeira enquanto observava o caçador – Pensei que seria uma bela oportunidade para o teste de sangue de sua cria, Rhuan.
Rhuan sabia que iria acabar assim.
- Uma cria contra um Antigo? – Desdenhou Teodor – Quer acabar com o garoto?
- Ora, ele é a primeira cria que Rhuan aceita em séculos. Achei que talvez fosse alguém excepicional. – Renata respondeu encarando Rhuan, que apenas ergueu os ombros.
- E se o escolhi por seus lindos olhos? – Rhuan retrucou – Ou melhor, ainda, por que minha vigia está no cio? Ou quem sabe eu estou? Posso ter sido contaminado por essa onda de literatura vampiresca moderna. Ciúmes, Atra? – ele sorriu.
- Façamos o seguinte – interrompeu Rockwell tentando apaziguar o começo da discussão – Envio minhas tropas de caça, e levamos a cria de Rhuan junto. O deixamos agir e vemos do que é capaz. De acordo?
- Preferia enviar meu executor – Teodor protestou.
- Eu aprovo. – concordou Renata.
- Por mim... – desdenhou Rhuan.
- Então faremos assim. – Rockwell encerrou a discussão.
- Se Lance e Rosetta estivessem aqui, não acho que concordariam. – lamentou Teodor.
- Mas não estão. – Cortou Renata – Assim fica decidido. Estarei aguardando os resultados.
Após mais alguns minutos de debate, os representantes da cúpula presentes deixaram a sala de reunião.
- Achei que fosse participar da reunião. – disse Renata em meio aos murmúrios e estalos que provocava enquanto brincava com o caçador ainda preso à cadeira.
- Sou apenas um representante, Atra-dono. Não tenho direito de me envolver em assuntos de outros reinos.
- E por isso ficou mergulhado nas sombras todo esse tempo?
- Apenas achei que se sentiriam mais a vontade sem minha presença. Agora, se me permite, irei me retirar.
Hoshi voltou a desaparecer nas sombras conforme mais e mais estalos começaram a ecoar pela sala, até que um último gemido escapou da boca do caçador poucos segundos antes do ultimo “crec”. Então, o Bispo Vermelho saiu da sala após dizer que seus serviçais podia se alimentar dos restos do caçador.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Noite 33, PT. 02

Não havia se passado muito tempo desde que Thiago havia sido deixado no grande salão do que ele achava ser uma catedral dos vampiros. Uma catedral cujas janelas eram enfeitadas pela história de um casal que havia se conhecido ainda em sua juventude, mais tarde se casado e gerado um filho. Uma catedral que no lugar de um altar possuía um enorme trono de madeira negra, quase reluzente, talhada com a forma de uma revoada de pássaros emaranhados em roseiras. Velas de chamas azuladas e grandes quadros pintados com figuras que o jovem vampiro não conhecia. Exceto por um. Emoldurado em um dos cantos da catedral, pintado ainda a base d’água de um jovem em trajes nobres, com olhos claros e cachos dourados.
- Não mudou nada, não é mesmo? – Indagou um homem alto, negro e bem acima do peso. – Boa noite, rapaz. – completou, estendendo a mão para Thiago.
- Boa noite. – respondeu Thi apertando a mão do homem – Ainda não me acostumei com a idéia de alguém tão velho.
- Você acaba acostumando... Perdoe-me, mas ainda não ouvi seu nome. – indagou o homem ainda em sua postura incólume.
- Thiago.
- Apenas Thiago? Sem o nome mortal e nem o nome de clã ainda? Interessante. Sozinho?
- Meu... Mestre está na reunião, senhor...?
- Edward. Edward Rockwell. – disse o homem, abrindo um largo sorriso que deixavam a mostra seus dois longos caninos - Ah, sim, a reunião. Peço desculpas, então, mas terei que me ausentar e rumar para o encontro. Foi um prazer conhecê-lo, Thiago.
- Igualmente, senhor Rockwell.
Thiago voltou a caminhar pela sala conforme o homem se afastou. Ele não o conhecia, mas sabia que o vampiro devia ser uma das razões pra tantos vigias do lado de fora. O salão agora estava bem mais cheio, abarrotado de seres em trajes de gala, como se participassem de um grande festival. Pelo menos agora Thi se sentia mais confortável com aquele terno e a gravata já alargada no pescoço.
Rockwell desceu pelos largos degraus de pedra. Cada passo seu ecoava pelo corredor enquanto as tochas reluziam uma luz azulada em seu rosto. Fazia dois anos desde a última reunião. Dez, desde que toda cúpula fora reunida. Na última vez, o motivo havia sido sua posse, sucedendo seu mestre. A Torre Vermelha. Agora, o vampiro imaginava qual seria o motivo da nova reunião. O garoto que Rhuan transformara, talvez...?
Por alguns instantes, sua mente voltou ao seu primeiro encontro com o vampiro loiro. Rockwell ainda era novo, humano. Fugia desesperadamente na direção contrária aos tiros disparados pelos mosquetes dos sulistas e dos latidos dos cachorros em seu encalço. De alguma forma, havia se separado do grupo de escravos fugitivos. Sua esperança é que os liberalistas ainda o estivessem aguardando no ponto de encontro. Seus pulmões pareciam queimar a cada vez que inspirava. Já quase não sentia mais as pernas, tropeçando entre um passo e outro. Apenas o medo o fazia continuar em frente.
Ele sentiu o impacto nas costas o atirando no chão. A ardência na lateral de seu corpo, seguido pelo calor do sangue se espalhando por debaixo de sua blusa rasgada. O suor escorria por seu rosto salgando sua boca e fazendo os olhos arderem. Ele sabia que estava morrendo. Começou a se arrastar pelo chão lamacento a procura de um esconderijo. Ele iria morrer, mas até lá, não seria capturado. Pelo menos em sua morte, seria livre.
A visão turvava e a respiração já não era mais involuntária. Entre um arrastar e outro, um par de alhos amarelados surgiu entre as folhagens rasteiras. Tudo parecia se mover lentamente. O cão se aproximou abrindo a bocarra para exibir os dentes enquanto rosnava o encarando. Rockwell apenas abaixou a cabeça sorrindo. Não tinha nada a perder. O cão saltou com arreganhando o focinho, enquanto o escravo fugido utilizou de toda sua força para conseguir rolar e proteger o rosto com o braço, onde as presas do cão se encravaram com tanta força que os dois puderam ouvir o estalo do osso se partindo. Mas já não sentia mais dor, nem quando o cachorro começou a chacoalhar a cabeça ainda com o braço entre os dentes, fazendo com que o osso do escravo atravessasse a carne e os ossos se transformando numa fratura exposta. O que o fez sorrir mais uma vez, ao ver que de dentro do negro escravo, surgiam os ossos brancos. Tão brancos quanto qualquer um de seus patrões. No fim, eram todos os mesmos malditos infelizes. Ele, os patrões, o cachorro. Conforme sua visão escurecia, não conseguia deixar de sorrir com o último pensamento que iria ficar em sua mente. O sangue vermelho, os ossos brancos. Eram todos a mesma coisa. Não valiam nada.
O ganido do cachorro, seguido do respingo de sangue em seu rosto fizeram o ex-escravo sair do seu mundo e voltar à realidade. As presas do cão não seguravam mais seu abraço, que agora se dobrava em forma de V sob o tórax de Rockwell, que virou a cabeça com dificuldade, avistando quatro silhuetas se aproximando.
- Ainda vive? – Ele ouviu com dificuldade uma voz feminina indagar.
- Está vivo, criança? – indagou, dessa vez uma voz masculina enquanto uma das silhuetas se abaixava para examinar seu estado. Era um jovem de olhos claros, cabelos loiros encaracolados e pele alva.
Finalmente estava morto, pensou o ex-escravo. E um anjo havia vindo buscá-lo para o guiar até o céu ao encontro de seus irmãos.
- Não. – Respondeu Rockwell com dificuldade, soltando mais um tossido que a palavra.
- Ora – Uma terceira voz se juntou a conversa – Que coincidência afortunada – disse em tom de riso – Nós também não. Que tal se juntar à família? – completou.
Rockwell sorriu exibindo os dentes ensangüentados já sem conseguir enxergar com quem falava.
- Adoraria, senhor.
Ele não conseguiu falar o senhor, nem completar o adoraria, menos ainda ouvir o que falava, pois perdeu a consciência antes disso. Mas as quatro figuras entenderam o recado. E quatro semanas depois, Nasceria Edward Rockwell, vampiro que mais tarde formaria seu próprio clã, viria pra essa terra recém descoberta e decidira ficar, séculos depois, herdando o título de Torre Vermelha.
Voltando ao presente, Rockwell finalmente chegava a porta negra que dava passagem a sala da reunião, abrindo-se conforme o vampiro se aproximava. Ele entrou na sala, encontrando os outros cinco convocados para reunião. Entre eles, uma das quatro figuras daquela noite: o vampiro de olhos claros e cabelos dourados. Rhuan, que já estava sentado em seu lugar, se entretendo com um aparelho eletrônico na mão. Não fora ele seu mestre, que o havia ensinado quem deveria ser respeitado. Quem devia ameaçar e quem deveria se aliar. Rhuan, esse era um dos que deveriam ser temidos.
Rockwell cumprimentou a todos e sentou-se. Era hora de começar a reunião.

domingo, 16 de janeiro de 2011

O homem na minha varanda

Um dia, encontrei um homem. Era uma figura estranha. Vestia um terno preto, cartola e uma rosa chá na lapela. Ele estava tomando chá de camomila. A bengala apoiada no braço da cadeira. Uma dessas bengalas de madeira bem escura, com uns desenhos estranhos talhados nela. Óculos escuros espelhados redondos estilo John Lenon. Ele tomou um gole da xícara de porcelana branca com a borda dourada que exibia uma pequena rachadura. Ele estava sentado na minha varanda.

Moro no 13° andar.

Me aproximei surpreso. De onde ele vinha? Como havia ido parar ali? Por que na minha varanda? Inúmeras perguntas pipocaram na minha cabeça sobre o homem na minha varanda. Quando cheguei a alguns passos da mesinha que ele havia se apossado para o chá daquela tarde nublada, ele me convidou para sentar. Voz grave, mas gentil. Sem muito volume, sem exageros. Sentei enquanto ele me encarava por de trás dos óculos. A pele pálida de aparência frágil. Não sei dizer se ele aparentava 40, 50 ou 100 anos. Parecia todas essas idades juntas.

- Você se preocupa demais com coisas irrelevantes. - ele disse antes de tomar mais um gole de camomila.

- Quem é o senhor? Por que está na minha varanda? - disparei apressado - E como chegou aqui?

Ele acabou de sorver o gole do chá e depositou a xícara no pequeno pires sobre a mesa.

- Se eu for o Fred, o João ou o Batista, que diferença vai fazer? Você não me conhece. Ninguém me conhece. Apenas quiz parar um pouco, fazer uma pausa. Chá? - indagou com ar risonho.

- Não, não quero chá! Quero saber quem é você e como chegou aqui! - exclamei quase batendo na mesa e recebendo um suspiro de desaprovação em resposta.

- Eu não sou ninguém. Ninguém sabe meu nome. Ninguém me chama, nem quer me encontrar. Portanto não sou ninguém. Cheguei aqui andando. De que outra forma seria? Estava um pouco cansado do trabalho e resolvi fazer uma pausa. E quem sabe conseguir alguns minutos de prosa com uma moça bonita? Pelo menos consegui a prosa. Já me dou por satisfeito.

- O senhor está brincando comigo? - indaguei irritado

- Um pouco, sim. Desculpe. Velha mania. Mas não costumo ter com quem falar ou brincar. Estou meio enferrujado, eu diria. Qual seu nome? - ele perguntou amigável de repente.

-... Alguém. - respondi com um sorriso no rosto.

- É justo. - ele consentiu - Seria mais se eu não soubesse seu nome, que você tem 23 anos, está começando um novo trabalho e apaixonado por aquela linda garota que conheceu faz umas semanas, não seria? - ele respondeu displicente, quase me fazendo pular da cadeira.

- Que---Como sabe dessas coisas? O senhor está me seguindo? Espiando?!

- Não... Não. Eu sei de tudo. Pelo menos mais do que a maioria saberia saber. Sei quase tudo de todos. Diria que sou o segundo que mais sabe.

- Mas não sabe quem é. - respondi rápido.

- Sei o que sou, mas não quem sou. Veja bem, não tenho nome, tenho uma função. Encontro todos, mas ninguém me encontra. É um trabalho triste. - comentou desanimado.

- Deve ser mesmo. - concordei.

- Chá? - ele tornou a indagar.

- Acho que dessa vez vou aceitar. - respondi um pouco na defensiva.

Ele pegou o bule ainda fumegante e despejou o chá numa segunda xícara que eu não tinha visto antes que estava na mesa.

- Obrigado.

- É o mínimo que posso fazer, afinal, você está me proporcionando meu minuto de descanso.

- E o que você faz, mesmo? – reiniciei a conversa.

- Você pode dizer que transporto pessoas.

- Sem que elas te encontrem?

- Isso.

- Mas você as encontra?

- Exatamente.

Parei por alguns instantes.

- Tem certeza que você pode fazer essa pausa?

- Sim, sim. Muito de vez em quando. Mas acontece de surgir a oportunidade.

- Deve ser realmente solitário seu trabalho. – Concordei pensativo.

- É. Mas também é necessário. Vital, eu diria. – ele comentou tomando mais um gole de chá

- Vital? - desacreditei.

- É. - ele respondeu observando um casal de pássaros que passou voando a alguns centímetros da varanda.

- Pra quem? – Insisti.

- Pra todos.

Alguns instantes de silêncio se seguiram enquanto ele tomava chá e eu observava.

-... Gostaria de uns biscoitos? - resolvi perguntar.

- Acho que não será possível.

- Por quê?

- Está quase na hora de voltar ao trabalho. - ele explicou.

- Certeza? – provoquei.

- Bom, talvez alguns... Pra viagem. - ele respondeu com um ar risonho novamente, gesticulando com a mão.

- Vou te encontrar de novo quando voltar?

- Vou te encontrar de novo. - ele disse amigável

Entrei para pegar um pacote de bolachas no armário quando ouvi um estrondo ao longe. Corri até a varanda pra ver o que era. Lá em baixo, na rua, uma pequena coluna de fumaça se formava em um cruzamento. E o homem na minha varanda havia sumido, deixando apenas uma xícara de chá de camomila pela metade. Debrucei sobre o parapeito e respirei fundo deixando um sorriso aparecer.

- É, parece que acabou seu intervalo.

Então entrei para trocar de roupa e passar na casa da garota que tinha conhecido fazia umas semanas, deixando um pratinho com cinco bolachas na mesa da varanda.