quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Noite 33, PT. 02

Não havia se passado muito tempo desde que Thiago havia sido deixado no grande salão do que ele achava ser uma catedral dos vampiros. Uma catedral cujas janelas eram enfeitadas pela história de um casal que havia se conhecido ainda em sua juventude, mais tarde se casado e gerado um filho. Uma catedral que no lugar de um altar possuía um enorme trono de madeira negra, quase reluzente, talhada com a forma de uma revoada de pássaros emaranhados em roseiras. Velas de chamas azuladas e grandes quadros pintados com figuras que o jovem vampiro não conhecia. Exceto por um. Emoldurado em um dos cantos da catedral, pintado ainda a base d’água de um jovem em trajes nobres, com olhos claros e cachos dourados.
- Não mudou nada, não é mesmo? – Indagou um homem alto, negro e bem acima do peso. – Boa noite, rapaz. – completou, estendendo a mão para Thiago.
- Boa noite. – respondeu Thi apertando a mão do homem – Ainda não me acostumei com a idéia de alguém tão velho.
- Você acaba acostumando... Perdoe-me, mas ainda não ouvi seu nome. – indagou o homem ainda em sua postura incólume.
- Thiago.
- Apenas Thiago? Sem o nome mortal e nem o nome de clã ainda? Interessante. Sozinho?
- Meu... Mestre está na reunião, senhor...?
- Edward. Edward Rockwell. – disse o homem, abrindo um largo sorriso que deixavam a mostra seus dois longos caninos - Ah, sim, a reunião. Peço desculpas, então, mas terei que me ausentar e rumar para o encontro. Foi um prazer conhecê-lo, Thiago.
- Igualmente, senhor Rockwell.
Thiago voltou a caminhar pela sala conforme o homem se afastou. Ele não o conhecia, mas sabia que o vampiro devia ser uma das razões pra tantos vigias do lado de fora. O salão agora estava bem mais cheio, abarrotado de seres em trajes de gala, como se participassem de um grande festival. Pelo menos agora Thi se sentia mais confortável com aquele terno e a gravata já alargada no pescoço.
Rockwell desceu pelos largos degraus de pedra. Cada passo seu ecoava pelo corredor enquanto as tochas reluziam uma luz azulada em seu rosto. Fazia dois anos desde a última reunião. Dez, desde que toda cúpula fora reunida. Na última vez, o motivo havia sido sua posse, sucedendo seu mestre. A Torre Vermelha. Agora, o vampiro imaginava qual seria o motivo da nova reunião. O garoto que Rhuan transformara, talvez...?
Por alguns instantes, sua mente voltou ao seu primeiro encontro com o vampiro loiro. Rockwell ainda era novo, humano. Fugia desesperadamente na direção contrária aos tiros disparados pelos mosquetes dos sulistas e dos latidos dos cachorros em seu encalço. De alguma forma, havia se separado do grupo de escravos fugitivos. Sua esperança é que os liberalistas ainda o estivessem aguardando no ponto de encontro. Seus pulmões pareciam queimar a cada vez que inspirava. Já quase não sentia mais as pernas, tropeçando entre um passo e outro. Apenas o medo o fazia continuar em frente.
Ele sentiu o impacto nas costas o atirando no chão. A ardência na lateral de seu corpo, seguido pelo calor do sangue se espalhando por debaixo de sua blusa rasgada. O suor escorria por seu rosto salgando sua boca e fazendo os olhos arderem. Ele sabia que estava morrendo. Começou a se arrastar pelo chão lamacento a procura de um esconderijo. Ele iria morrer, mas até lá, não seria capturado. Pelo menos em sua morte, seria livre.
A visão turvava e a respiração já não era mais involuntária. Entre um arrastar e outro, um par de alhos amarelados surgiu entre as folhagens rasteiras. Tudo parecia se mover lentamente. O cão se aproximou abrindo a bocarra para exibir os dentes enquanto rosnava o encarando. Rockwell apenas abaixou a cabeça sorrindo. Não tinha nada a perder. O cão saltou com arreganhando o focinho, enquanto o escravo fugido utilizou de toda sua força para conseguir rolar e proteger o rosto com o braço, onde as presas do cão se encravaram com tanta força que os dois puderam ouvir o estalo do osso se partindo. Mas já não sentia mais dor, nem quando o cachorro começou a chacoalhar a cabeça ainda com o braço entre os dentes, fazendo com que o osso do escravo atravessasse a carne e os ossos se transformando numa fratura exposta. O que o fez sorrir mais uma vez, ao ver que de dentro do negro escravo, surgiam os ossos brancos. Tão brancos quanto qualquer um de seus patrões. No fim, eram todos os mesmos malditos infelizes. Ele, os patrões, o cachorro. Conforme sua visão escurecia, não conseguia deixar de sorrir com o último pensamento que iria ficar em sua mente. O sangue vermelho, os ossos brancos. Eram todos a mesma coisa. Não valiam nada.
O ganido do cachorro, seguido do respingo de sangue em seu rosto fizeram o ex-escravo sair do seu mundo e voltar à realidade. As presas do cão não seguravam mais seu abraço, que agora se dobrava em forma de V sob o tórax de Rockwell, que virou a cabeça com dificuldade, avistando quatro silhuetas se aproximando.
- Ainda vive? – Ele ouviu com dificuldade uma voz feminina indagar.
- Está vivo, criança? – indagou, dessa vez uma voz masculina enquanto uma das silhuetas se abaixava para examinar seu estado. Era um jovem de olhos claros, cabelos loiros encaracolados e pele alva.
Finalmente estava morto, pensou o ex-escravo. E um anjo havia vindo buscá-lo para o guiar até o céu ao encontro de seus irmãos.
- Não. – Respondeu Rockwell com dificuldade, soltando mais um tossido que a palavra.
- Ora – Uma terceira voz se juntou a conversa – Que coincidência afortunada – disse em tom de riso – Nós também não. Que tal se juntar à família? – completou.
Rockwell sorriu exibindo os dentes ensangüentados já sem conseguir enxergar com quem falava.
- Adoraria, senhor.
Ele não conseguiu falar o senhor, nem completar o adoraria, menos ainda ouvir o que falava, pois perdeu a consciência antes disso. Mas as quatro figuras entenderam o recado. E quatro semanas depois, Nasceria Edward Rockwell, vampiro que mais tarde formaria seu próprio clã, viria pra essa terra recém descoberta e decidira ficar, séculos depois, herdando o título de Torre Vermelha.
Voltando ao presente, Rockwell finalmente chegava a porta negra que dava passagem a sala da reunião, abrindo-se conforme o vampiro se aproximava. Ele entrou na sala, encontrando os outros cinco convocados para reunião. Entre eles, uma das quatro figuras daquela noite: o vampiro de olhos claros e cabelos dourados. Rhuan, que já estava sentado em seu lugar, se entretendo com um aparelho eletrônico na mão. Não fora ele seu mestre, que o havia ensinado quem deveria ser respeitado. Quem devia ameaçar e quem deveria se aliar. Rhuan, esse era um dos que deveriam ser temidos.
Rockwell cumprimentou a todos e sentou-se. Era hora de começar a reunião.

Nenhum comentário:

Postar um comentário