quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Crônicas noturnas: Jogo das Sombras 01


Laura abriu os olhos com dificuldade. As pálpebras pareciam apertar, forçando-a voltar a fechá-los. Sentia todo o corpo dolorido e cada respirar era um tormento. O gosto metálico do sangue persistia grudado em sua boca. Aos poucos, o cenário foi parando de rodar e dando lugar a um espaçoso salão branco. O mais branco que já havia visto na vida. Foi percorrendo o teto vagarosamente com o olhar. Um grande lustre redondo marcava o centro do cômodo. Uma meia luz fraca, apenas o suficiente pra clarear o ambiente.

Ela tentou levantar, porém ainda não tinha forças suficientes pra erguer o corpo. Vozes femininas finalmente alcançaram seus ouvidos. Aos poucos, a garota virou a cabeça, encontrando um círculo de figuras encapuzadas sentadas num círculo ao redor da cama onde estava, seguindo os desenhos riscados no chão. Um pedestal com soro ficava ao lado do leito, ligado a sua mão direita. Um lençol branco a cobria até os ombros sobre a camisola de seda que trajava.

Ela voltou a deitar na cama.

- onde eu to? – ela perguntou olhando novamente o teto, sentindo os olhos tornarem a cerrar.

Então as imagens explodiram dentro da cabeça. A perseguição na volta do aeroporto, o carro capotando, Bart a arrastando pra longe e a fumaça, o sangue e nada.

Ela voltou a tentar se erguer, com os olhos arregalados. Sendo acalmada e posta de volta na cama.

- Será possível que vocês nunca sabem cooperar com a gente? – ela ouviu a conhecida voz de Mariana como sempre, reclamando com ela enquanto as vozes continuavam entoando alguma coisa ao fundo– Você passou oito horas sendo remendada. A menos que queira tornar a se arrebentar toda de dentro pra fora, é melhor ficar bem quietinha.

- Mas... – ela começou a rebater tentando afastar as mãos da médica.

- Mas nada! – ela suspirou irritada encarando o olhar de Laura – Ele tá vivo. Muito melhor que você. Era isso que queria saber? Ficou aqui sentado uns três dias. Então saiu. Agora fica quieta aí!

- Saiu pra onde? – Laura perguntou sentindo as dores conseqüentes da tentativa de levantar.

- Ora, da última vez que chequei tinha um navio estranho no porto e um vampiro perigoso solto pela cidade. Onde você acha que ele foi?

Laura não respondeu. Apenas se ajeitou na cama e puxou o lençol.

- Agora tente descansar. Você sobreviveu. Já é mais do que quase todo o time europeu que desembarcou. Vai precisar ficar aqui por mais um bom tempo. Deixe as curandeiras fazerem o trabalho delas, senão mando te amarrar na cama.

A Dra. Saiu, deixando Laura novamente sozinha com aquelas figuras encapuzadas entoando cânticos. De alguma forma, ela tinha sobrevivido. Ele tinha salvado ela. Laura sabia disso. Então, voltou a fechar os olhos e deixar o sono tomar conta. Era o melhor a fazer naquele momento. Se recuperar e voltar às missões de campo.

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O barulho do rotor das hélices do helicóptero provocava o silêncio dentro do veículo. Bart continuava sentado, com a mesma expressão séria desde o incidente na estrada. Ninguém teria saído com vida de algo assim. Não carregando Laura nos braços e cercado por quase 20 vigias. Mas, de alguma forma, ele havia feito.

O que os outros não sabiam era como. E esse como era o que fazia as sobrancelhas de Bart franzir a cada minuto. Ele sabia que devia ter morrido.

Cercado, carregando feridos. O velho caçador se jogou por cima do capô de um dos carros, disparando contra os vigias mais próximos. Precisava alcançar as armas. Os tiros ricocheteavam em todos os cantos. Duas balas passaram bem perto de sua cabeça. A energia de seu suit não lhe daria muito mais tempo. Dois vigias se aproximavam por trás de um dos carros virados fazendo barulho suficiente para alertar Bart, que se atirou contra o chão disparando por debaixo do veículo nas pernas dos dois, derrubando-os  e depois finalizando o trabalho com uma rajada de tiros.

Balas acabando. A fumaça começando a se elevar. Ele não sabia se dos carros ou granadas jogadas pelos vigias. Gritos ao fundo indicavam as pessoas na estrada apavoradas com o que acontecia.

O caçador respirou fundo, sacando duas facas que escavam presas em suas costas. Tinha que se virar com aquilo até conseguir chegar ao Hover. Esperou a primeira leva de disparos parar e deslizou por entre os carros. Não devia faltar muito. Só precisava avançar mais alguns metros e...

O golpe de um dos vigias lhe acertou em cheio o rosto, quase o derrubando. Ele sorriu. Vigia idiota. Devia ter atirado e terminado o trabalho. Bart desviou do segundo golpe e no terceiro agarrou o braço do homem, torcendo-o e virando até ouvir o estalo do osso, então girou pra trás do serviçal e num movimento ligeiro das mãos lhe quebrou o pescoço, tornando a avançar antes mesmo do corpo tocar o chão. Talvez ele realmente conseguisse fazer aquilo.

No meio do pensamento, o impacto de dois tiros contra seu peito o atirou pra trás, sugando o que restava da energia de seu suit para impedir a munição de atravessar seu corpo. O golpe não foi mortal, mas forte o suficiente para deixar o caçador sem ar estirado no meio da estrada. O vigia se aproximou, mirando cuidadosamente sua cabeça. Bart tentou alcançar o revolver, mas o pé do Vigia esmagando sua mão contra o chão impediu que a alcançasse. Após tanto tempo, finalmente tudo parecia se encaminhar para o fim. O vigia riu. Bart também. Ele disparou.

Por um instante, Bart pode sentir o calor da bala tocando sua testa... Nada. O vigia havia sumido. Os tiros parado. Restava apenas Bart caído no chão, encarando as nuvens.

- Bom dia. – disse a voz suave do homem que se aproximava.

Bart virou o rosto, fitando-o. Ele era alto, muito magro, a cabeça não trazia nem sinal de cabelo, uma barba rala castanho-clara sombreava seu maxilar emoldurando o sorriso esgaçado deixando à mostra os impecáveis dentes brancos. Ele deu uma leve puxada nas calças antes de se abaixar ao lado do caçador.

- Reconhece? – disse erguendo a mão e mostrando a bala, segura entre os dedos indicador e polegar, enquanto os demais ficavam erguidos num meio arqueio. Luvas brancas. – Era o que estava destinado a entrar bem aqui. – comentou dando um toque com a ponta da munição na testa de Bart. – Mas não dessa vez. Não ainda.

- Quem é você? – Bart perguntou tentando se levantar, mas seu corpo parecia pregado ao chão.

- Hum... Uma boa pergunta. Infelizmente com muitas respostas. Resumirei, então, para você. Sou um mágico. Posso fazer coisas que ninguém mais pode. Como, por exemplo, fazer desaparecer uma bala e aparecer em outro lugar. Porém, é uma arte complicada. Exige uma certa ciência ou compreensão. No fim, as duas coisas são sinônimos. Um dia minha magia também será ciência, quando as massas adquirirem a compreensão para entender o que faço. Até lá, sou um mágico.

- Já que se deu ao trabalho de fazer a bala sumir e aparecer em outro lugar, acredito que não veio me matar. A menos que seu plano seja falar até me matar de tédio.

- Não, não vim te matar. Vim não te matar. Mas, infelizmente, como disse antes, a mágica exige um certo conhecimento. Veja, esta bala deveria matar alguém. Mas impedi que ela o matasse. Tudo tem um propósito. Não posso impedir que esse propósito seja cumprido. Logo, essa bala precisa matar alguém. – ele disse conforme deslizava o dedo pela munição e a carregava em um revolver que tirou do bolso. Depois, deu uma olhadela pra cada lado, como se espiasse além da fumaça – Vamos fazê-la cumprir seu propósito, então.

Ele atirou a bala em alguma direção e esperou alguns segundos. Então acenou com a cabeça e sorriu.

- Feito. Ele disse guardando novamente a arma – Viu? No fim, é até simples. Mas não vim aqui falar sobre isso. Desculpe, costumo divagar. Vim avisar que não somos seus inimigos. Não tentem nos impedir. Salvamos suas vidas. Também podemos tirá-la. Fiquem quietinhos tomando sol e deixem as sombras cuidarem das sombras. É melhor assim.

Ao terminar, ele levantou, pôs as mãos nos bolsos e saiu assoviando conforme caminhava tranquilamente. Deixando apenas Bart e Laura no local. Ninguém mais apareceu. A fumaça não dissipou. Horas mais tarde, uma equipe de resgate da Fundação chegou.

E agora, contrariando o aviso, Bart seguia no helicóptero rumo a uma zona de efeito. Ele sabia que o mágico tinha algo haver com o navio misterioso. Sabia que era por isso que aquela equipe britânica havia vindo. E, ainda assim, a Fundação enviava seus caçadores para dentro da boca do leão.

O velho caçador apertou mais uma vez a aliança entre os dedos e se benzeu.

Algo grande estava a caminho.