domingo, 27 de fevereiro de 2011

Dia 29 - I

A larga coluna de fumaça escurecia o céu da manhã. Ao fundo, as badaladas dos sinos de uma pequena igreja anunciavam a chegada das sete horas à Bart, que fitava aquele céu azul maculado pelas espessas nuvens negras fedendo a queimado. Um ataque rápido e limpo, minutos após o nascer do sol que, ao contrário do que muitos podem pensar, era a melhor hora para atacar uma ninhada. Os vampiros teriam acabado de entrar em transe, e os vigias ainda estariam começando a se organizar para proteger o território. Logo, poucas baixas e um resultado quase sempre eficaz. Os restos carbonizados de uma mansão com 42 corpos transformados em cinzas malditas confirmavam isso.

O caçador veterano sentou nos restos da escadaria que levavam a varanda, pegando um lenço do bolso de um vigia morto para limpar os óculos escuros. Quase não precisou usar seu suit. Há alguns anos atrás, não teria precisado nem mesmo vestí-lo. Deu uma olhada em volta, observando os corpos dos vigias serem carregados e atirados dentro de um caminhão de lixo. Era a forma mais fácil de transporte. Um só caminhão conseguia levar umas dezenas de corpos até o local onde seriam incinerados. Era quase engraçado um caminhão de lixo ser usado para limpar a sujeira provocada em cada missão. Os caçadores haviam sofridos quatro baixas, mas esses eram transportados nos veículos dos sobreviventes de volta para base, onde era tratados, e só então cremados. Não podiam haver corpos. Não podia haver nada que pudesse ser usado pelo outro lado. Foi um dos muitos erros cometidos ainda no princípio da Fundação e que não voltaria a acontecer. Nada fica pra trás. Do pó ao pó.

- Não vai mesmo tentar saber se to viva? – a voz animada de Laura chegou aos ouvidos de Bart, que ergueu a cabeça para encontrar a menina correndo em sua direção com uma FAL no ombro, o cabelo dourado bagunçado e o rosto sujo de fuligem.
- Eu devia? – ele perguntou terminando de limpar as lentes.
- Só se estivesse preocupado. – Ela respondeu sorridente
- Então, não precisava.
- Por que você não admite que se preocupa? – reclamou Laura emburrada – Acha que não vi você me procurando? – ela riu enquanto sentava ao lado de Bart.
- Estava checando a área, garota. Só isso.
- Mentiroso.
- Cara suja.
- O quê? Onde? – perguntou ela meio sem jeito.
- Tudo. – debochou Bart jogando o lenço pra ela.

O velho levantou e começou a caminhar até sua Harley parada a poucos metros do caminhão de lixo, deixando Laura tentando tirar a fuligem do rosto com o lenço.

- Quando terminar, não esquece de devolver pro vigia morto.
- Vigia morto? – ela parou olhando o lenço por alguns segundos e o atirou em cima do cadáver – Eu não acredito que você me deu isso pra passar no rosto!
- E não foi você quem matou esse? Além disso, pra alguém que se arrasta no chão, quase teve a cara amassada e por pouco não foi jogada pela janela, achei que o lenço de um morto não era nada demais.
- I-isso... – a garota tentou rebater sem graça – Isso foi parte do...
- Precisa ir à enfermaria? – Bart a interrompeu.
- Há – ela abriu um largo sorriso – Viu como você se preocupa!
- Fica quieta e vamos embora. – reclamou ele jogando um capacete pra garota – Temos que voltar a sede. Parece que vamos receber alguns caçadores estrangeiros.
- Posso dirigir? – ela perguntou com uma mistura de esperança e brincadeira ao colocar o capacete.
- Vai sonhando.

O caminho até a sede foi rápido, mesmo no transito conturbado das ruas cariocas. Laura manteve a cabeça recostada nas costas de Bart. Se sentia segura assim. Hoje havia sido sua sexta missão em campo. Nenhuma fratura, poucos hematomas, sem o gosto de sangue na boca ou o suit inutilizado. Comparado a primeira missão, qualquer coisa seria uma melhora. Mas ela estava aprendendo rápido. E estava viva. No mesmo dia em que Laura entrara pra Fundação, outras oito pessoas também entraram. Quatro desistiram na primeira semana de treinamento. Outros três, não sobreviveram à primeira missão. O último, na segunda semana, no campo de treino. Laura passara por tudo isso. Sobrevivera. E durante todo esse tempo, Bart estava lá, a observando, a protegendo. Ela gostava de apertar o corpo contra as costas do caçador e fechar os olhos, deixando-se sentir o movimento da moto, deslizando pelo asfalto. 

- Eu vou ver o que eles querem. Você vai pra enfermaria ver se ainda tá tudo inteiro. – disse Bart enquanto os dois desciam a escadaria.
- Não gosto de ir lá. – Respondeu Laura contrariada.
- Não, você não gosta da Dra. Mariana.
- Ela é quem não gosta de mim! – protestou a garota.
- Se você diz. Mas isso não muda o fato dela ser nossa melhor médica e de você precisar ir ver se ainda tá tudo inteiro aí dentro.

Laura concordou a contra-gosto. Ela sabia que era verdade. Mariana havia recolocado seu ombro no lugar pelo menos quatro vezes nas ultimas duas semanas. Remendado seus ossos e costurado alguns cortes. Deixando a garotas com algumas poucas cicatrizes para ostentar. Nada perto de um braço recolocado. Mas ainda assim, a faziam se sentir mais valiosa na Fundação. Mas ela sempre suspeitava que a Dra. Albernaz fazia questão de realizar todo o processo de cura um pouco mais doloroso que o normal com ela. Então os dois se separaram. Seria mais um longo dia.

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